22 de outubro de 2013

O sofrimento é só um pensamento


O segredo da felicidade está na escolha de nossos pensamentos, ou antes na direção de nossa atenção, a cada segundo.

A desventura vem do encadeamento automático e ininterrupto dos pensamentos infelizes.

A desventura consiste em julgar-nos felizes ou infelizes, em perguntar se somos felizes ou infelizes. Somos felizes quando vivemos no instante, em plena consciência, fora de qualquer julgamento.

Que o olho da consciência discriminante distinga sem descanso a ausência completa da “realidade objetiva” das causas de nossa dor e o caráter ilusório do próprio sofrimento: o encadeamento automático das emoções e dos pensamentos.

Primeiro pensamento: ela está fazendo barulho. Segundo pensamento: o fato de ela estar fazendo barulho me irrita. Terceiro pensamento: censuro-me por ficar irritado com o barulho que ela está fazendo pois devo amá-la. Quarto pensamento: censuro-me por me censurar, identifico-me com meus pensamentos e penetro no ódio que sinto por mim mesmo. O que nos faz mal não são nossos pensamentos e, sim, os julgamentos que deles fazemos; ou pior ainda, os julgamentos que fazemos de nossos julgamentos. Cortemos pela raiz as associações automáticas, as cadeias de pensamentos dolorosos e recuperemos desde já a simplicidade do instante.

Não podemos escolher nossos pensamentos, mas podemos decidir não acreditar neles. Culpar-se por um mau pensamento é aumentar o sofrimento. Será que somos responsáveis por nossos sonhos? Não. Mas se o pesadelo ficar insuportável, por que não acordar? Era só um pensamento.

Nossos pensamentos, nossas emoções: agitações de neurônios, secreções de hormônios. Nada de muito sólido. Por que então se fiar neles?

As emoções, tais como o ciúme ou certos fantasmas dolorosos, germinam como mato. Como extirpá-las? Como expulsar esses demônios devoradores? Como adquirir paz na alma? Basta lembrar que são meras ilusões formadas pelo espírito, um produto de seu pensamento. Poderíamos dirigir a atenção para outras representações ou nos abrir para o que nos oferecem os sentidos neste instante. Imaginando uma dor supostamente dos outros, ou comparando aquilo que é com aquilo que deveria ser, nos torturamos. Não paramos de produzir imagens, pensamentos, emoções que nos fazem sofrer. Somos, além disso, nossos próprios carrascos, carcereiros, nossos próprios ilusionistas e farsantes. As paredes e os instrumentos dessa câmara de tortura pessoal, que é às vezes nosso espírito, não passam de pensamentos, lembranças, temores, imaginações que não correspondem a nada de atual, nada de efetivamente presente aqui e agora.

É fácil dissolver a inveja. Lembre-se de que ninguém jamais possui um objeto. Vivemos todos instantes sucessivos. Não possuímos senão segundos de experiência que se esvaem tão logo vividos. A inveja, então, é, literalmente, sem objeto, já que a pessoa invejada não experimenta senão os segundos, um após o outro, tudo como você e como todo mundo. A única diferença entre os seres está na capacidade de aderir alegremente ao futuro. Reside na maior ou menor propensão a comparar constantemente nossa experiência com o que esperávamos que “ela devesse ser”. Ao invejar, produzimos do nada nosso próprio sofrimento. O sofrimento não surge porque não temos o que o outro possui (se fosse assim, seríamos necessariamente o tempo todo infelizes, já que há sempre alguém que possui algo que não temos). O sofrimento vem porque pensamos que ele ou ela tem aquilo que não temos.

Conseguimos aquilo que mais desejávamos e ainda assim continuamos sofrendo terrivelmente, seja pela lembrança de uma frustração anterior, pela idéia de que não conseguimos o objeto no momento em que começamos a desejá-lo, por todo o ressentimento, toda a dor que nos provocou a falta, pelo desejo insatisfeito, pela idéia de que parte de nossa vida esteve irremediavelmente privada do que mais precisávamos... ou pelo surgimento de um novo desejo. Mas, na realidade, o passado não existe e sofremos agora, quando o melhor a fazer é nos divertir. Toda essa infelicidade no passado está em nossa ausência, pois em vez de desfrutarmos do instante, abismamo-nos no desejo.

Ele tem o que eu não tenho. Eu tenho o que eles não têm. Ele é mais bonito, mais forte, mais feliz do que eu. Eles se divertem enquanto eu trabalho. Valho menos do que... Valho mais do que... Sou mais feliz do que... Sou mais inteligente do que... Sou melhor do que... Em cada um desses pensamentos, nossas almas se dilaceram. A comparação é a marca do diabo.

A comparação e a acumulação são reflexos íntimos do espírito. Sempre que estiverem em ação, lembremos que o instante presente é a única coisa que realmente existe e que não se presta a nenhuma das duas.

Temos sempre na cabeça uma vozinha, quase inaudível mas incansável, encarniçada, nos criticando e semeando a dúvida.

Passamos o tempo todo a nos minar insidiosamente. Não que não seja preciso nos examinar, prestar atenção em nossos atos e estados mentais, mas parece, justamente, que essa voz da crítica incessante escapa à atenção, o que lhe permite realizar mais facilmente sua obra de demolição. Ela escapa à atenção porque sou “eu” justamente que não paro de dizer à meia-voz “você não deveria... você fez mal... você deveria antes..., etc”. Essa voz maldita que se aloja no centro de nosso ser usurpa o lugar da alma, fazendo-se passar por ela. Mas sua natureza não é a da centelha e, sim, a de uma ducha de água fria, que nos assola. Transformamo-nos nessa ducha fria. E surpreendemo-nos de não mais encontrar o calor e a luz do fogo. Mas o Ego que está nas nossas costas e o Parasita que se hospeda em nosso peito empenham-se em querer apagá-la. Todos aqueles que nos criticam, nos culpam, nos desmoralizam se apoiam nessa voz que trai a voz interior. Pior: as circunstâncias e as pessoas que nos confundem traduzem essa voz no mundo “exterior”, materializam-na. Inútil fazê-la calar. Contentemo-nos com escutá-la distintamente e reconhecê-la pelo que ela é: nosso pesadelo inimigo. Ela perde o poder assim que é reconhecida.

Escute seu discurso íntimo. Que nobreza há em se cobrir de vergonha, em se justificar, em criticar os outros, em calcular seus efeitos? Abandone tudo isso e comece a se amar, a se amar exatamente como você é. Deixe o sofrimento.

Que atmosfera reina no seu íntimo? O ódio? A agressividade? O ciúme? O orgulho? O ressentimento? A falta? A voracidade? A cobiça? O medo? A culpa? A autocrítica? A auto-satisfação? A hipocrisia? O recalque? A serenidade de fachada? Ou antes a honestidade, o amor, a abertura ao instante? Observe sem trégua. Sinta o cheiro da sua alma.

Somos nós que produzimos nosso sofrimento: desejo, medo, culpa, arrependimento, desgosto, desprezo de si, inveja, orgulho, cólera... E quase sempre o sofrimento é abstrato, surge porque comparamos aquilo que é com aquilo que não é, aquilo que temos com aquilo que os outros têm, o presente com o futuro ou o passado. Lembranças que fazem mal, fantasmas torturantes, cenas imaginadas ou indefinidamente repisadas... No entanto, respiramos, sentimos, pensamos, participamos do milagre da vida. Se, ao menos, conseguíssemos ficar atentos nem que fosse por um instante à graça de viver...

Noventa e cinco por cento de nossos sofrimentos são imaginários.

O pensamento nos faz sofrer. Envolve-nos na cobiça, na agressão, no medo, na esperança, na ilusão... Se nos contentássemos em sentir, evitaríamos naturalmente o sofrimento.

O sofrimento é um pensamento que aspira ao prazer ou à fuga da dor, mas não há nada a fazer senão sentir, aqui e agora.

O mal é o que nos faz sofrer e nos impede de sentir. É uma única coisa: o pensamento.

Libertando-nos dos pensamentos, liberamo-nos do medo.

O problema não é atingir o estado vigilante. Isso já de saída traria a esperança de consegui-lo, a frustração de ainda não tê-lo atingido, o medo de estar para sempre distante dele. O problema é parar de sofrer agora. Parar, portanto, de pensar que não estamos alerta. Quando abandonamos um pensamento, um problema, uma dúvida, um medo e retornamos ao presente, ficamos alerta. A vigilância consiste em relaxar a própria vigilância.

Não há solução porque não há problema.
                                   Mareei Duchamp

Qual é a tonalidade da vida psíquica, a “base” de todas as atividades mentais? O medo, a culpa, a insatisfação, a frustração, a necessidade, a irritação... E ignoramos tudo isso. Trata-se da própria cor da existência. Essa cor é nosso ego, o que adquire “poder” sobre nós. Se, no lugar de deixar essa base passar despercebida, nos livrássemos do ego, ou se, ao menos, o víssemos e o relativizássemos, se lhe déssemos uma cara, então nenhuma tirania, nenhuma ilusão seriam exercidas contra nós. Recusaríamos qualquer cumplicidade.
Os outros egos e seus pretensos poderes não mais teriam em que se agarrar. Não poderíamos mais nos causar medo, apostar em nossa culpa, nosso desejo de ganhar, nossa angústia de perder, nosso desejo de louvação, nosso receio de censura, nossa “necessidade de amor”. Ao sair de cena o avalista do bem e do mal, das vitórias e das derrotas, aquele a quem dirigimos nossos pensamentos, o suposto “eu”; ao descobrirmos a futilidade daquele que julga e que arquiva atrás do espelho sem aço da consciência, tornamo-nos verdadeiros guerreiros.

A cobiça e a cólera solidificam os fenômenos e nos impedem de perceber seu vazio intrínseco. Por ignorância, supomos a existência das coisas ou dos indivíduos no fluxo instável da experiência e é a partir daí que o desejo e a agressão se desenvolvem. A cobiça e a cólera são só pensamentos, vozes que vêm nos visitar. Não somos nós que nos irritamos ou que desejamos. A cobiça e a cólera nos fazem tomar as ilusões pelas realidades. Os pensamentos são como sonhos e a ignorância, uma sonolência.

Realizar, ver, sentir a natureza onírica dos pensamentos no momento em que eles surgem já é um grande passo no caminho da sabedoria e da felicidade. Com efeito, os pensamentos não nos fazem sofrer, eles são o sofrimento. Tristeza, ódio, sentimento de desaprovação, desejo insatisfeito ou frustrado, inveja, ciúme, desprezo, medo, culpa, quase todas as dores são pensamentos. E se não aumentássemos os sofrimentos do corpo com os pensamentos, quão mais fácil não seria suportar a maioria deles! A partir de então, que liberdade a de perceber claramente o caráter onírico e ilusório dos pensamentos que surgem! O sofrimento foi só um sonho ruim.

...
O Fogo Liberador - Pierre Lèvy

[ Texto dedicado a uma grande pessoa, a qual tive o imenso prazer de "coincidentemente" conhecer: "A vida é isso Gu, um belo e enorme enigma que, quando desvendado, nos revela tudo aquilo que sempre sonhamos, e que antes imaginávamos ser apenas parte deste sonho bom. Mas que não é... é real, e está a sua espera para ser contemplada." ]

Nenhum comentário:

Postar um comentário